segunda-feira, 16 de abril de 2012

Confiar no produtor ou confiar na região?

O artigo é de Rui Falcão e traz para a ordem do dia uma das questões mais importantes, em nossa opinião, para o futuro dos vinhos em Portugal: defender rigidamente as denominações de origem, imposições de castas, etc. ou mostrar um pouco de abertura e permitir aos produtores (e aos consumidores) dentro de alguma liberdade fazer as suas escolhas? Interessantíssimo e apaixonante debate...


De burocratas todos temos um pouco. A queda para a legislação, para a normalização, para a definição de regras minuciosas sobre comportamentos e costumes, a tendência para a regulamentação de todos os detalhes da vida, faz parte da condição humana. Mas em nenhuma parte do mundo essa fúria legisladora é tão marcante como na velha Europa onde tradições e costumes amiúde se confundem com obrigações e regulamentos. Da tradição até à imposição o passo é curto e o mundo do vinho está particularmente sujeito ao peso do passado, onde as palavras tradição e imposição são interpretações que no panorama vinícola europeu rimam em sintonia.
As denominações de origem, com todos os constrangimentos associados, caracterizam a criação francesa do início da década de 30 do século passado, criação que esteve na base da maioria das legislações europeias. As denominações de origem fundamentam-se supostamente na experiência, na observação empírica de velhos conhecimentos passados de geração em geração. Uma experiência alimentada por séculos de rotinas que identificaram castas aptas para um terroir específico e uma série quase infinita de parâmetros que forçaram a criação de regras rígidas que, em casos extremos, podem acabar por representar uma imposição aos agricultores da região. A instituição de regras determinou os conceitos de legalidade e ilegalidade, o correcto e o incorrecto, o admissível e o proscrito, partindo da experiência acumulada de séculos, alimentada pelo velho método pragmático de tentativa e erro.
Este é o modelo francês essencial, o protótipo que justificou a criação das principais denominações históricas. Quando exportado para as diferentes denominações europeias o conceito perdeu alguma da sua validade ao não cumprir os princípios base de pretender retratar experiências de séculos. Demasiadas regiões portuguesas e europeias foram criadas por simples burocratas sem experiência que de forma artificial legislaram sobre temas que desconheciam. Outras nasceram para servir interesses instalados, por vezes desenhadas em redor de adegas cooperativas, justificadas por causas económicas e políticas em detrimento da racionalidade da vinha e dos solos. É essa realidade que explica a escolha despropositada de tantas castas obrigatórias e aconselhadas ou o impedimento de castas válidas em outras denominações.
Regras europeias que, apesar das virtudes implícitas, fomentam o imobilismo e uma forte limitação comercial face a países com legislações mais liberais. No novo mundo, em países como a Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Chile, Argentina, Estados Unidos da América ou Canadá, os impeditivos legais e as imposições legislativas são quase inexistentes seguindo uma doutrina avessa a leis que criem demasiados limites e barreiras. Acima de tudo, no novo mundo não são aceites desculpas para maus vinhos. Como tal não existem limitações ou orientações oficiais na escolha de castas, solos, tempos de estágio, rendimentos por hectare e demais parâmetros. As regras são definidas pelo mercado, pela vontade e consciência de cada produtor. Promove-se a confiança no produtor em detrimento da confiança na região. As uvas podem chegar de qualquer ponto do país, sem limites geográficos, permitindo assim diluir o peso das condicionantes climáticas que impõem o carácter de cada colheita. Pretendem-se criar vinhos mais ou menos uniformes, consistentes, imutáveis, vinhos que permitam alimentar uma ligação de confiança e previsibilidade no consumidor.
A ousadia do livre arbítrio, a liberdade de escolha, é o conceito mais atraente do novo mundo. E é também a sua melhor arma, por permitir uma adaptação rápida à evolução dos mercados, por ser flexível, por diminuir o tempo de reacção face a qualquer ameaça. Mas também ajuda a despir os vinhos de temperamento e carácter, convertendo-os em meros produtos, sem histórias para contar, sem momentos de paixão, sem desilusões, surpresas e momentos de glória. Encontrar um ponto de equilíbrio entre a proibição europeia e o liberalismo feroz do novo mundo permitiria a criação de vinhos portugueses que tivessem origem em diferentes regiões nacionais, ou, quem sabe, em vinhos com origem em distintas regiões europeias. Porque não?

Sem comentários:

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...